E aqui tem pintor e tem pedreiroTem médico e engenheiroTem igreja e terreiroOs tiozinho no bar e breja geladaUm paraíso erguido com muita força e garraA vista daqui da lage nenhum dinheiro paga
“Ele está gripadinho, não é? Vou mandar minha filha levar folha de mastruz e você bate com leite”. Depois de uns minutos a menina estava me chamando no portão. Fiz a mistura e como na época amamentava tomei e dei a Ifé, meu filho (era menor de um ano).
Isso não aconteceu na cidade de Cachoeira ou em outro interior da Bahia. Aconteceu em Salvador, onde moro. É notório como os espaços urbanos aproximam e distanciam pessoas. Em cidade grande as relações são diferentes e os afetos são mínimos ou restritos. Receber uma folha para curar uma doença de meu filho, presente de uma tradição popular fez eu me sentir parte deste lugar.
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Vista do alto do Eng. Velho da Federação. Foto: Átila Colin |
Engenho Velho da Federação foi onde escolhi para viver. Bairro popular que guarda um rico acervo de templos de matriz africana, grandes personalidades negras e inúmeras histórias. Em meio a guerras e o terror que a mídia mostra na televisão, é o meu espaço de afeto.
Crianças na porta fazendo barulho, brincando de sete pedrinhas, futebol e pula cordas. Um som na porta de casa, uma breja, dança, pagodão e risos sem fim. O brother vindo me avisar que “hoje tem paredão”, a vizinha gritando lá da esquina “Ifé, venha cá” e me oferecendo um prato de feijão, me marcando naquela postagem hilária no facebook e o convite para ir ao aniversário no final de semana. Este é meu espaço de afeto.
Considerada como um território com ausência de urbanidade e sem civilidade, a favela é vista de forma marginalizada. De acordo com o Censo de 1990 do IBGE era definida como “aglomerados subnormais” e devido as condições de formação e estruturação desses espaços, como ausência de necessidades básicas de saneamento, vista como “fora da cidade” ou o avesso dela. Eu defino a favela como um território afetivo e dentro da historicidade de formação desses espaços, vejo como “quilombos urbanos”. Espaços com população majoritariamente negra que cuidam uma das outras e formam redes de apoio estratégicas, que perpassa também pelo viés do crime organizado.
Território e pertencimento
Nós pertencemos a um território. Quando nos perguntam “de onde você é?” nossa resposta guarda o que somos a partir de onde viemos. Esse pertencimento Milton Santos chama de “território usado”, definido como “objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado”. Espaço onde pensamos e vivemos as relações sociais. Trazendo esse conceito para a favela falamos dos sujeitos que aqui vivem e os laços de afeto construídos, os saberes, personagens e histórias, comunicação, sonhos e paixões.
Não sei se é aqui que quero permanecer, mas aqui me construo com meu filho. Quando o vejo correr com as outras crianças e viver uma infância livre, diferente de tudo que imaginei encontrar em Salvador é pensar que este território de afeto ajuda a construir novos sujeitos e relações humanas mais saudáveis. Favela não é só tristeza, guerra e dor. A favela é um território incrível.
Referências
BARBOSA, Jorge Luiz; SILVA, Jailson de Souza e. As favelas como territórios de reinvenção da cidade. Link de acesso: file:///C:/Users/lorena%20ife/Downloads/9062-31868-1-SM.pdf
COLIN, Átila. Engeveliano. Link de acesso: https://soundcloud.com/atilacolin/attila-colin-engeveliano-1
SANTOS, Milton. O retorno do território. Link de acesso: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf
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