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Afrodengo

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Sobre escrevivências, amores e pessoas

Eu escrevo desde criança. Colecionava diários. Escrevia sobre sonhos, desejos e amores. Eu tinha muitos amores. Escrevia cartas que nunca seriam entregues e outras que foram entregues e lidas. Para uns era um simples pedaço de papel que seria rasgado e para outros paixões de uma menina boba. Meus amores platônicos viravam enredos e livros de amor.

A mãe de uma amiga achou minhas agendas da época da escola no lixo e as guardou. Disse que aquelas lindas palavras não poderiam ser esquecidas. Ainda não tive coragem de ir buscar. Lembrei de como as colegas da escola faziam fila para ler minhas teorias da vida, sobre o amor e como eu decorava as agendas-livro.

Cresci e as palavras ainda continuam em mim. Os amores continuam em mim. Nas poesias do Afrodengo. Nos afetos construídos diariamente. No nome da minha família Ifé. Esse amor me tornou jornalista. A moça da comunicação. As palavras são meu combustível!


Há algum tempo venho entrevistando e escrevendo sobre os projetos de outras pessoas. Estética, línguas, cultura, ancestralidade, casamento, terapias e sonhos concretos. Eu escrevo sobre amores. Os amores das outras pessoas. Esses amores que construímos dentro de nós. Aqueles sonhos que a gente guarda na mala e torna nossa caminhada. Aqueles sonhos que nem sequer recordamos de como começou. A minha tarefa é mexer nessas memórias, de lembrar que antes de você ser o que é, alguém lá atrás faz parte desse ser. Pessoas que te inspiram e são mais do que artistas de tevê que você venera. São as pessoas da sua vida.

Eu trabalho com as palavras. Com a essência das pessoas. Eu trabalho com a audição, com o olhar, o olfato, os sentidos. Uma entrevista é a permissão para entrar na sua morada. Eu escrevo sobre amores. Eu fujo à técnica das palavras, eu escrevo sentires e como bem lembrou Conceição Evaristo: escrevivências.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Favela como território de afeto

E aqui tem pintor e tem pedreiro 
Tem médico e engenheiro 
Tem igreja e terreiro
Os tiozinho no bar e breja gelada 
Um paraíso erguido com muita força e garra 
A vista daqui da lage nenhum dinheiro paga

“Ele está gripadinho, não é? Vou mandar minha filha levar folha de mastruz e você bate com leite”. Depois de uns minutos a menina estava me chamando no portão. Fiz a mistura e como na época amamentava tomei e dei a Ifé, meu filho (era menor de um ano).

Isso não aconteceu na cidade de Cachoeira ou em outro interior da Bahia. Aconteceu em Salvador, onde moro. É notório como os espaços urbanos aproximam e distanciam pessoas. Em cidade grande as relações são diferentes e os afetos são mínimos ou restritos. Receber uma folha para curar uma doença de meu filho, presente de uma tradição popular fez eu me sentir parte deste lugar.

Vista do alto do Eng. Velho da Federação.
Foto: Átila Colin
Engenho Velho da Federação foi onde escolhi para viver. Bairro popular que guarda um rico acervo de templos de matriz africana, grandes personalidades negras e inúmeras histórias. Em meio a guerras e o terror que a mídia mostra na televisão, é o meu espaço de afeto.

Crianças na porta fazendo barulho, brincando de sete pedrinhas, futebol e pula cordas. Um som na porta de casa, uma breja, dança, pagodão e risos sem fim. O brother vindo me avisar que “hoje tem paredão”, a vizinha gritando lá da esquina “Ifé, venha cá” e me oferecendo um prato de feijão, me marcando naquela postagem hilária no facebook e o convite para ir ao aniversário no final de semana. Este é meu espaço de afeto.

Considerada como um território com ausência de urbanidade e sem civilidade, a favela é vista de forma marginalizada. De acordo com o Censo de 1990 do IBGE era definida como “aglomerados subnormais” e devido as condições de formação e estruturação desses espaços, como ausência de necessidades básicas de saneamento, vista como “fora da cidade” ou o avesso dela. Eu defino a favela como um território afetivo e dentro da historicidade de formação desses espaços, vejo como “quilombos urbanos”. Espaços com população majoritariamente negra que cuidam uma das outras e formam redes de apoio estratégicas, que perpassa também pelo viés do crime organizado.

Território e pertencimento

Nós pertencemos a um território. Quando nos perguntam “de onde você é?” nossa resposta guarda o que somos a partir de onde viemos. Esse pertencimento Milton Santos chama de “território usado”, definido como “objetos e ações, sinônimo de espaço humano, espaço habitado”.  Espaço onde pensamos e vivemos as relações sociais. Trazendo esse conceito para a favela falamos dos sujeitos que aqui vivem e os laços de afeto construídos, os saberes, personagens e histórias, comunicação, sonhos e paixões.

Não sei se é aqui que quero permanecer, mas aqui me construo com meu filho. Quando o vejo correr com as outras crianças e viver uma infância livre, diferente de tudo que imaginei encontrar em Salvador é pensar que este território de afeto ajuda a construir novos sujeitos e relações humanas mais saudáveis. Favela não é só tristeza, guerra e dor. A favela é um território incrível.

Referências

BARBOSA, Jorge Luiz; SILVA, Jailson de Souza e. As favelas como territórios de reinvenção da cidade. Link de acesso: file:///C:/Users/lorena%20ife/Downloads/9062-31868-1-SM.pdf 

COLIN, Átila. Engeveliano. Link de acesso: https://soundcloud.com/atilacolin/attila-colin-engeveliano-1

SANTOS, Milton. O retorno do território. Link de acesso: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal16/D16Santos.pdf